Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, sobre a inadmissibilidade de suspensão retroativa das funções anteriormente exercidas por ex-membros do Governo
Conclusões:
1.ª A Direção-Geral da Saúde é um serviço central do Ministério da Saúde, integrado na administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa e dirigido por um diretor-geral, coadjuvado por dois subdiretores-gerais, que são cargos de direção superior de 1.º e de 2.º graus, respetivamente (arts. 1.º e 3.º do Decreto Regulamentar n.º 14/2012, de 26 de janeiro);
2.ª O provimento destes cargos é realizado em comissão de serviço, como resulta do artigo 9.º, n.º 1, al.ª a), da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e do artigo 19.º, n.º s 1 e 3, da Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro, que aprova o estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração central, regional e local do Estado;
3.ª No ordenamento jurídico português, a comissão de serviço caracteriza-se como a modalidade de designação, seja de um trabalhador submetido a um vínculo de emprego público, seja de um trabalhador desprovido desse vínculo, para exercer funções, designadamente cargos dirigentes, com duração limitada e, em regra, amovíveis;
4.ª O Decreto-Lei n.º 191-F/79, de 26 de junho, que estabelecia o regime jurídico e condições de exercício das funções de direção e chefia, previa a suspensão da respetiva comissão de serviço em caso de nomeação de um diretor ou subdiretor geral como membro do governo [art. 5.º, n.º 1, al. a) e 2];
5.ª Pouco tempo depois, o artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 467/79, de 7 de dezembro, veio determinar que «os membros do Governo não podem ser prejudicados na sua colocação ou emprego permanente, bem como nos benefícios sociais anteriormente auferidos, enquanto exercerem as respetivas funções [...]»;
6.ª E o n.º 3 da mesma disposição legal veio determinar que, nos casos em que a atividade, pública ou privada, se encontrasse sujeita a termo de caducidade, a posse como membro do Governo suspenderia a respetiva contagem, observando-se quanto às funções de chefia abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 191-F/79, de 26 de junho, o que se dispunha nesse diploma;
7.ª O Decreto-Lei n.º 191-F/79, de 26 de junho, foi depois expressamente revogado pelo Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de setembro [art. 26.º, al. a)], que reviu o Estatuto do Pessoal Dirigente da Função Pública, mas manteve aquela suspensão ope legis da comissão de serviço [art. 6.º, n.º 1, al. a)];
8.ª O Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de setembro, também foi expressamente revogado pelo artigo 40.º, al.ª a), da Lei n.º 49/99, de 22 de junho, que estabeleceu o estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração central e local do Estado e da administração regional, bem como, com as necessárias adaptações, dos institutos públicos que revestissem a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos e que, ainda, manteve a suspensão ope legis da comissão de serviço, no caso de nomeação para cargos governativos [art. 19.º, n.º 1, al. a)];
9.ª A Lei n.º 49/99, de 22 de junho, foi expressamente revogada pela Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro, que consagra o atual Estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração central, regional e local do Estado (art. 38.º), pondo termo à referida suspensão ope legis, que se manteve, apenas, transitoriamente, até ao termo dos mandatos que deram origem a essa suspensão (art. 37.º);
10.ª No ano seguinte, a Lei n.º 51/2005, de 30 de agosto, que estabeleceu regras para as nomeações dos altos cargos dirigentes da Administração Pública, veio alterar a Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro, reintroduzindo a suspensão da comissão de serviço, mas limitada aos titulares dos cargos de direção superior do 2.º grau e de direção intermédia e apenas quando sejam nomeados para gabinetes de membros do Governo ou equiparados ou em regime de substituição (art. 26.º-A);
11.ª De forma que, como resulta da mera letra da lei, a nomeação de titular de cargo de direção superior do 2.º grau ou de direção intermédia como membro do Governo, não está incluída no elenco das situações que, ope legis, suspendem a comissão de serviço;
12.ª Assim, na vigência da Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro, sem prejuízo das situações ressalvadas na norma transitória do seu artigo 37.º, n.º 2, a tomada de posse seguida de exercício de funções como membro do Governo, por titular de cargo dirigente, não origina a suspensão da respetiva comissão de serviço, cessando esta nos termos previstos no artigo 25.º, n.º 1, al. b);
13.ª Tanto mais que o próprio Decreto-Lei n.º 467/79, de 7 de dezembro, onde se podia ancorar a suspensão de comissões de serviço para cargos não dirigentes, também foi expressamente revogado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 32/2018, de 8 de maio;
14.ª O direito de não ser prejudicado na sua colocação, no seu emprego, na sua carreira profissional ou nos benefícios sociais a que tenha direito, em virtude do exercício de direitos políticos ou do desempenho de cargos públicos, consagrado no artigo 50.º, n.º 2, da Constituição permite, mas não obriga, o legislador a instituir mecanismos que garantam o regresso ao exercício do cargo em comissão de serviço;
15.ª Em causa está apenas a proibição de prejuízos que possam ocorrer na colocação, no emprego, na carreira profissional ou nos benefícios sociais a que o titular tenha direito, em virtude do exercício de direitos políticos ou do desempenho de cargos públicos;
16.ª O artigo 2.º da Lei n.º 26/2024, de 20 de fevereiro, aditou à Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, o artigo 6.º-A («garantias de trabalho e benefícios sociais dos membros do Governo»), cujo n.º 1, tem a seguinte redação: «[o]s membros do Governo não podem ser prejudicados na sua colocação, nos seus benefícios sociais ou no seu emprego permanente por virtude do desempenho de funções governativas.»;
17.ª Já o n.º 3 da norma aditada (artigo 6.º-A) tem a seguinte redação: «[n]o caso de função temporária por virtude de lei ou de contrato, o desempenho de funções governativas suspende a contagem do respetivo prazo»;
18.ª Nos termos do artigo 3.º da Lei n.º 26/2024, de 20 de fevereiro, «[o] disposto no artigo 6.º-A da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho [...] produz os seus efeitos à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 32/2018, de 8 de maio, que determina a cessação de efeitos de decretos-leis publicados entre 1975 e 1980.»;
19.ª A Constituição da República Portuguesa apenas proíbe a retroatividade de normas legislativas que restrinjam direitos, liberdades e garantias (art. 18.º, n.º 3) ou outros sob o mesmo regime (ex vi do art. 17.º), que criem impostos (art. 103.º, n.º 3), que incriminem determinadas condutas (art. 29.º, n.os 1 e 3) e que afrontem o Estado de direito (art. 2.º) ou o princípio de proteção da confiança legítima;
20.ª Excetuando os casos proibidos pela Lei fundamental, o legislador português não está impedido de atribuir eficácia retroativa a um determinado preceito legal;
21.ª Contudo, essa atribuição não poderá deixar de preservar os efeitos já produzidos, pelos factos que a lei se destina a regular (v.g. a cessão pretérita de uma comissão de serviço), nem violar os direitos entretanto, eventualmente, adquiridos por terceiros;
22.ª Cessada uma determinada comissão de serviço, mantendo-se a necessidade que lhe está subjacente, deverá ser desencadeado procedimento tendente a uma nova nomeação (art. 27.º da Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro);
23.ª O artigo 3.º da Lei n.º 26/2024, de 20 de fevereiro, não se limita a uma confirmação concretizadora dos efeitos jurídicos decorrentes do artigo 50.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, sendo antes uma norma inovadora que não poderá ultrapassar a cessação de uma comissão de serviço, nem frustrar o princípio da confiança;
24.ª Um diretor ou um subdiretor nacional de saúde, que tenha sido nomeado membro do Governo, não pode, ao abrigo da aplicação retroativa do artigo 6.º-A da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho (nos termos do art. 3.º da Lei n.º 26/2024, de 20 de fevereiro) regressar à comissão de serviço que antes exercia;
25.ª Até porque tal comissão de serviço se extinguiu e ou foi já provido alguém ou, pelo menos, encontra-se iniciado procedimento para recrutar um novo dirigente, sob pena de responsabilidade financeira [art. 65.º, n.º 1, al. b e l) da Lei Organização e Processo do Tribunal de Contas]; e
26.ª Em todo o caso, a Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro prevalece sobre quaisquer disposições gerais ou especiais relativas aos diversos serviços ou órgãos (art. 36.º, n.º 1), pelo que o regime introduzido pela Lei n.º 26/2024, de 20 de fevereiro, jamais seria aplicável na presente situação.
Este Parecer foi votado na sessão do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República de 28 de novembro de 2024.
Amadeu Francisco Ribeiro Guerra- João Conde Correia dos Santos (Relator) - José Joaquim Arrepia Ferreira - Carlos Alberto Correia de Oliveira - Ricardo Lopes Dinis Pedro - Maria Carolina Durão Pereira - José Manuel Ribeiro de Almeida - Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo - Eduardo André Folque da Costa Ferreira.
Este parecer foi homologado por despacho de 23 de dezembro de 2024 de Sua Excelência o Chefe de Gabinete da Ministra da Saúde.
16 de janeiro de 2025. - A Secretária-Geral da Procuradoria-Geral da República, Carla Botelho.
Texto completo do parecer